Quase pretos, quase brancos
A antropóloga Lilia Schwarcz discute a ligação entre ciência e racismo no Brasil do século passado e de como essas teorias ainda permanecem entre nós
Edição Impressa 134 - Abril 2007
Lilia Moritz Schwarcz
“Quando vós nos feris, não sangramos nós? Quando nos divertis, não rimos nós? Quando nos envenenais, não morremos nós? E se nos enganais, não haveremos nós de nos vingar? Se somos como vós em todo o resto, nisto também seremos semelhantes. Se um judeu enganar um cristão, qual a humildade que encontra? A vingança. Se um cristão enganar um judeu, qual deve ser seu sentimento, segundo o exemplo cristão? A vingança, pois”, fala Shylock, o polêmico personagem de O mercador de Veneza, de Shakespeare. Longe de defender a violência, o bardo retrata um sentimento, infelizmente tão humano, embora de “cientificismo” newtoniano, da “ação-reação-ação” etc. quando a questão são as supostas diferenças raciais. A ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Política da Promoção da Igualdade Racial, disse, em entrevista recente, que “não é racismo quando um negro se insurge contra um branco, porque quem foi açoitado a vida inteira não tem a obrigação de gostar de quem o açoitou”. Concordar ou não concordar?
O dilema, hamletiano, é dos mais complexos. Como, aliás, é tudo o que se refere à raça, em especial num país como o Brasil. Afinal, aqui, “ninguém é racista”, como determinou, em 1988, no centenário da Abolição, uma pesquisa cujos resultados eram sintomáticos: 97% dos entrevistados afirmaram não ter preconceito. Mas, ao serem perguntados se conheciam pessoas e situações que revelavam a discriminação racial no país, 98% responderam com um sonoro “sim”. “A conclusão informal era que todo brasileiro parece se sentir como uma ‘ilha de democracia racial’, cercado de racistas por todos os lados”, avalia a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, autora, entre outros, de Retrato em branco e negro, O espetáculo das raças e As barbas do imperador. Democracia racial ou inferno racista? “O primeiro procedimento é destacar o caráter pseudocientífico do termo ‘raça’, mesmo porque seu sentido é diverso de lugar para lugar e suas determinações de caráter biológico têm efeito apenas relativo e estatístico. Não há como imputar à natureza o que é da ordem da cultura: a humanidade é uma, as culturas é que são plurais”, analisa Lilia.
Curiosamente, o racismo é um tema nascido com a modernidade, que “apesar de tão globalizada, encontra-se marcada por ódios históricos, nomeados a partir da raça, da etnia e da origem”. Somos “quase brancos, quase pretos”, como cantam Caetano e Gil, em Haiti, e, por isso passamos nossa história a discutir esse “quase”. “A raça, no Brasil, sempre foi um tema usado (e abusado) por ‘pessoas’ fora do estatuto da lei. Nessa sociedade marcada pela desigualdade e pelos privilégios a ‘raça’ fez e faz parte de uma agenda nacional pautada por duas atitudes paralelas e simétricas: a exclusão social e a assimilação cultural. Apesar de grande parte da população permanecer alijada da cidadania, a convivência racial é, paradoxalmente, inflacionada sob o signo da cultura e reconhecida como ícone nacional.” Isso não é de hoje.
“Passado o secular período do escravismo, entre 1890 e 1920, a elite brasileira se debateu com a angústia quanto às origens genéticas mestiças de nosso povo e de sua capacidade de servir de base para o tão sonhado desenvolvimento econômico, político e cultural. Balizados na interpretação racista, postas as origens mestiçadas do povo brasileiro, seríamos incapazes ao desenvolvimento e ao progresso”, escreve o professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Marcelo Paixão, em seu artigo “O justo combate”. O conceito de “raça” já chega ao Brasil “fora do lugar”, necessitando do “jeitinho brasileiro” para funcionar. “Se falar na raça parecia oportuno, o tema gerava paradoxos: implicava admitir a inexistência de futuro para uma nação de raças mistas como a nossa.
A saída foi preconizar a adoção do ideário científico, porém, sem seu corolário teórico, ou seja, aceitar a idéia da diferença ontológica entre as raças sem a condenação à hibridação, já que o país, a essas alturas, estava irremediavelmente miscigenado”, observa Lilia. “Incômoda era a situação desses intelectuais, que oscilavam entre a adoção de modelos deterministas e a verificação de que o país, pensado nesses termos, era inviável.” Pior: modelo de sucesso na Europa de meados dos oitocentos, as teorias raciais chegaram tardiamente ao Brasil. “Raça, desde então, aparece como um conceito de negociação, sendo que as interpretações variavam.”
O debate anacrônico se deu em vários territórios: as escolas médicas de Recife e do Rio de Janeiro (onde nasceu a “medicina política”), as faculdades de direito, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, os museus etnológicos e a literatura, mesmo a de ficção. Representante médico, o maranhense-baiano Nina Rodrigues assumia um darwinismo racial que preconizava a separação das raças: a seleção natural daria cabo, no processo competitivo, das inferiores, que seriam postas sob controle ou eliminadas. Com ele, a medicina adquiriu foros políticos na medicina legal: “Os exemplos de embriaguez, alienação, epilepsia, violência etc. passaram a comprovar os modelos darwinistas sociais em sua condenação do cruzamento, em seu alerta à ‘imperfeição da hereditariedade mista’”, observa Lilia.
O médico alagoano Arthur Ramos, representante do século XX, preferiu “dourar” a pílula do doutor Nina, modificando raça e mestiçamento por cultura e aculturação. “Os problemas nacionais passam a ser relidos à luz do referencial cultural, e não biológico. Assim, ao contrário das mazelas dos genes, supostamente eternas, os da cultura eram alteráveis por processos que mudassem hábitos sociais herdados”, explica Paixão. O racismo à brasileira.
Do lado jurídico, Sílvio Romero, de Recife, passou a defender que “o processo caldeador seria de importância fundamental para a adaptação aos trópicos dos descendentes de europeus e, assim, os eurodescendentes brasileiros, sem perder seus atributos originais, incorporariam o legado dos outros grupos raciais, absorvendo suas melhores qualidades”. Daí para o entusiasmo racial de Gilberto Freyre foi um pequeno passo, cuja grande inovação, nota Paixão, foi valorizar as matrizes genéticas e os hábitos culturais ordinários que formaram o povo brasileiro, sem perder tempo com pudores de ordem ético-racial. O brasileiro agora deveria se orgulhar de sua mistura.
Embora não seja um conceito diretamente forjado por Freyre, logo se começou a falar, pelo globo, da “democracia racial” brasileira, ainda que ela surja num momento em que nem sequer democracia política existia no país. Em São Paulo, Florestan Fernandes, irado com Freyre, retruca esse otimismo (em verdade, o autor de Casa-grande & senzala não escondeu o sadismo que existia na relação entre escravos e senhores, entre negros e brancos) com a tese de que a assimetria da escravidão permaneceu a funcionar.
Segundo Fernandes, o processo de modernização trouxera uma possibilidade de não efetiva realização de uma democracia racial, já que o nosso modelo, como o da relação senhor-escravo, permanecia dependente e periférico. Discriminar, longe de exceção, seria uma tradição entre nós. Nos anos 1990 antropólogos como Lilia e Peter Fry vão retomar de forma crítica o “mito da democracia racial”, valorizando, em especial, o conceito de “mito”, já que não se podia acreditar na tal democracia de raças. “Assim como não se pode negar o racismo, não se pode abrir mão de falar das singularidades dessa sociedade misturada.
Não apenas a mistura biológica, mas a miscigenação dos costumes e da religião”, escreveu Lilia. A democracia racial é um mito, não há dúvida. “Mas o mito guarda uma importância por ele mesmo, tendo em vista sinalizar um desejo coletivo, ausente de outras realidades, onde a discriminação racial não faria questão de se manifestar de forma velada. Considerando que toda sociedade se articula em torno de mitos de origem (como o american way of life ou a liberdade, igualdade e fraternidade, dos franceses), o da democracia racial seria apenas um entre outros”, avalia Paixão. “Dessa maneira, se vai longe o contexto intelectual de finais do século passado; se já não é mais cientificamente legítimo falar das diferenças raciais a partir de modelos darwinistas sociais, a raça, porém, permanece como tema central do pensamento brasileiro”, acredita Lilia.
Obs. Para ver na integra clique no link:http://www.revistapesquisa.fapesp.br/?art=3188&bd=1&pg=1&lg
A antropóloga Lilia Schwarcz discute a ligação entre ciência e racismo no Brasil do século passado e de como essas teorias ainda permanecem entre nós
Edição Impressa 134 - Abril 2007
Lilia Moritz Schwarcz
“Quando vós nos feris, não sangramos nós? Quando nos divertis, não rimos nós? Quando nos envenenais, não morremos nós? E se nos enganais, não haveremos nós de nos vingar? Se somos como vós em todo o resto, nisto também seremos semelhantes. Se um judeu enganar um cristão, qual a humildade que encontra? A vingança. Se um cristão enganar um judeu, qual deve ser seu sentimento, segundo o exemplo cristão? A vingança, pois”, fala Shylock, o polêmico personagem de O mercador de Veneza, de Shakespeare. Longe de defender a violência, o bardo retrata um sentimento, infelizmente tão humano, embora de “cientificismo” newtoniano, da “ação-reação-ação” etc. quando a questão são as supostas diferenças raciais. A ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Política da Promoção da Igualdade Racial, disse, em entrevista recente, que “não é racismo quando um negro se insurge contra um branco, porque quem foi açoitado a vida inteira não tem a obrigação de gostar de quem o açoitou”. Concordar ou não concordar?
O dilema, hamletiano, é dos mais complexos. Como, aliás, é tudo o que se refere à raça, em especial num país como o Brasil. Afinal, aqui, “ninguém é racista”, como determinou, em 1988, no centenário da Abolição, uma pesquisa cujos resultados eram sintomáticos: 97% dos entrevistados afirmaram não ter preconceito. Mas, ao serem perguntados se conheciam pessoas e situações que revelavam a discriminação racial no país, 98% responderam com um sonoro “sim”. “A conclusão informal era que todo brasileiro parece se sentir como uma ‘ilha de democracia racial’, cercado de racistas por todos os lados”, avalia a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, autora, entre outros, de Retrato em branco e negro, O espetáculo das raças e As barbas do imperador. Democracia racial ou inferno racista? “O primeiro procedimento é destacar o caráter pseudocientífico do termo ‘raça’, mesmo porque seu sentido é diverso de lugar para lugar e suas determinações de caráter biológico têm efeito apenas relativo e estatístico. Não há como imputar à natureza o que é da ordem da cultura: a humanidade é uma, as culturas é que são plurais”, analisa Lilia.
Curiosamente, o racismo é um tema nascido com a modernidade, que “apesar de tão globalizada, encontra-se marcada por ódios históricos, nomeados a partir da raça, da etnia e da origem”. Somos “quase brancos, quase pretos”, como cantam Caetano e Gil, em Haiti, e, por isso passamos nossa história a discutir esse “quase”. “A raça, no Brasil, sempre foi um tema usado (e abusado) por ‘pessoas’ fora do estatuto da lei. Nessa sociedade marcada pela desigualdade e pelos privilégios a ‘raça’ fez e faz parte de uma agenda nacional pautada por duas atitudes paralelas e simétricas: a exclusão social e a assimilação cultural. Apesar de grande parte da população permanecer alijada da cidadania, a convivência racial é, paradoxalmente, inflacionada sob o signo da cultura e reconhecida como ícone nacional.” Isso não é de hoje.
“Passado o secular período do escravismo, entre 1890 e 1920, a elite brasileira se debateu com a angústia quanto às origens genéticas mestiças de nosso povo e de sua capacidade de servir de base para o tão sonhado desenvolvimento econômico, político e cultural. Balizados na interpretação racista, postas as origens mestiçadas do povo brasileiro, seríamos incapazes ao desenvolvimento e ao progresso”, escreve o professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Marcelo Paixão, em seu artigo “O justo combate”. O conceito de “raça” já chega ao Brasil “fora do lugar”, necessitando do “jeitinho brasileiro” para funcionar. “Se falar na raça parecia oportuno, o tema gerava paradoxos: implicava admitir a inexistência de futuro para uma nação de raças mistas como a nossa.
A saída foi preconizar a adoção do ideário científico, porém, sem seu corolário teórico, ou seja, aceitar a idéia da diferença ontológica entre as raças sem a condenação à hibridação, já que o país, a essas alturas, estava irremediavelmente miscigenado”, observa Lilia. “Incômoda era a situação desses intelectuais, que oscilavam entre a adoção de modelos deterministas e a verificação de que o país, pensado nesses termos, era inviável.” Pior: modelo de sucesso na Europa de meados dos oitocentos, as teorias raciais chegaram tardiamente ao Brasil. “Raça, desde então, aparece como um conceito de negociação, sendo que as interpretações variavam.”
O debate anacrônico se deu em vários territórios: as escolas médicas de Recife e do Rio de Janeiro (onde nasceu a “medicina política”), as faculdades de direito, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, os museus etnológicos e a literatura, mesmo a de ficção. Representante médico, o maranhense-baiano Nina Rodrigues assumia um darwinismo racial que preconizava a separação das raças: a seleção natural daria cabo, no processo competitivo, das inferiores, que seriam postas sob controle ou eliminadas. Com ele, a medicina adquiriu foros políticos na medicina legal: “Os exemplos de embriaguez, alienação, epilepsia, violência etc. passaram a comprovar os modelos darwinistas sociais em sua condenação do cruzamento, em seu alerta à ‘imperfeição da hereditariedade mista’”, observa Lilia.
O médico alagoano Arthur Ramos, representante do século XX, preferiu “dourar” a pílula do doutor Nina, modificando raça e mestiçamento por cultura e aculturação. “Os problemas nacionais passam a ser relidos à luz do referencial cultural, e não biológico. Assim, ao contrário das mazelas dos genes, supostamente eternas, os da cultura eram alteráveis por processos que mudassem hábitos sociais herdados”, explica Paixão. O racismo à brasileira.
Do lado jurídico, Sílvio Romero, de Recife, passou a defender que “o processo caldeador seria de importância fundamental para a adaptação aos trópicos dos descendentes de europeus e, assim, os eurodescendentes brasileiros, sem perder seus atributos originais, incorporariam o legado dos outros grupos raciais, absorvendo suas melhores qualidades”. Daí para o entusiasmo racial de Gilberto Freyre foi um pequeno passo, cuja grande inovação, nota Paixão, foi valorizar as matrizes genéticas e os hábitos culturais ordinários que formaram o povo brasileiro, sem perder tempo com pudores de ordem ético-racial. O brasileiro agora deveria se orgulhar de sua mistura.
Embora não seja um conceito diretamente forjado por Freyre, logo se começou a falar, pelo globo, da “democracia racial” brasileira, ainda que ela surja num momento em que nem sequer democracia política existia no país. Em São Paulo, Florestan Fernandes, irado com Freyre, retruca esse otimismo (em verdade, o autor de Casa-grande & senzala não escondeu o sadismo que existia na relação entre escravos e senhores, entre negros e brancos) com a tese de que a assimetria da escravidão permaneceu a funcionar.
Segundo Fernandes, o processo de modernização trouxera uma possibilidade de não efetiva realização de uma democracia racial, já que o nosso modelo, como o da relação senhor-escravo, permanecia dependente e periférico. Discriminar, longe de exceção, seria uma tradição entre nós. Nos anos 1990 antropólogos como Lilia e Peter Fry vão retomar de forma crítica o “mito da democracia racial”, valorizando, em especial, o conceito de “mito”, já que não se podia acreditar na tal democracia de raças. “Assim como não se pode negar o racismo, não se pode abrir mão de falar das singularidades dessa sociedade misturada.
Não apenas a mistura biológica, mas a miscigenação dos costumes e da religião”, escreveu Lilia. A democracia racial é um mito, não há dúvida. “Mas o mito guarda uma importância por ele mesmo, tendo em vista sinalizar um desejo coletivo, ausente de outras realidades, onde a discriminação racial não faria questão de se manifestar de forma velada. Considerando que toda sociedade se articula em torno de mitos de origem (como o american way of life ou a liberdade, igualdade e fraternidade, dos franceses), o da democracia racial seria apenas um entre outros”, avalia Paixão. “Dessa maneira, se vai longe o contexto intelectual de finais do século passado; se já não é mais cientificamente legítimo falar das diferenças raciais a partir de modelos darwinistas sociais, a raça, porém, permanece como tema central do pensamento brasileiro”, acredita Lilia.
Obs. Para ver na integra clique no link:http://www.revistapesquisa.fapesp.br/?art=3188&bd=1&pg=1&lg
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